Não existe cinema de rua em Juiz de Fora
- Juliana Dias
- 21 de jun. de 2017
- 4 min de leitura
Já passa um pouco das 18h do dia 14 de junho de 2017. Uma quarta-feira com um clima típico de Juiz de Fora: quando você não sabe se vai sentir calor ou frio (talvez um pouco dos dois) e, por isso, acaba se enrolando em camadas de blusas e casacos. Foi assim que fui assistir à sessão final do Cine Palace, o último cinema de rua da cidade.

Em Juiz de Fora foi realizada a primeira exibição cinematográfica pública do estado de Minas Gerais, em 1897, no Teatro Juiz de Fora, na esquina da Rua Espírito Santo com Henrique Surerus, só um ano e meio depois da primeira exibição dos irmãos Lumière, em Paris. Desde então, a cidade já abrigou mais de 20 cinemas, a maioria no Centro, aos quais agora acrescentamos a qualidade “de rua”, em uma posição quase antagônica ao que a minha geração aprendeu a chamar de cinema: as salas modernas, incrustadas no interior dos centros comerciais.
Dentre esses espaços estava o Cine Palace. Com obras iniciadas em 1941, o número 581 da Rua Halfeld, esquina com a Batista, foi erguido no estilo art déco e nasceu para ser cinema. Hoje, tem sua fachada e volumetria tombadas por um decreto municipal de 2004. Um dos exemplares mais perfeitos desse tipo de arquitetura, o local, depois de adquirido em leilão, já não servirá mais aos propósitos para os quais foi criado.

Como muitos cinemas de rua, o Palace foi sinônimo de ocupação do espaço urbano desde sua inauguração, em 1948. Viu as agitadas décadas de 1960 e 1970 e, depois de quase 15 anos sem exibir filmes (entre 1984 e 1999), reabriu suas salas priorizando o cinema nacional e de arte. Além de ser o único na cidade com programas sociais como a “Sessão Cidadão” e o “Clube do Professor”, o cinema foi palco de festivais como o Primeiro Plano, de produções regionais, e do internacional Varilux de Cinema Francês, com o qual encerrou suas atividades.
Como me disse durante a exibição do filme “Perdidos em Paris” a gerente do Palace, Ana Cláudia Rodrigues, desde sua contratação já havia a consciência de que o cinema havia sido leiloado e que iria fechar. “A gente só não sabia quando esse momento ia chegar.” Mas chegou. Penso em quando foi a última vez que assisti a um filme aqui. Um ano atrás, no mesmo festival. Compro meus ingressos.
Com a última sessão marcada para as 20h15, o movimento em volta do cinema começou pouco depois das 17h, com integrantes do grupo “Salve Cine Palace” recolhendo assinaturas da população. Isadora Monteiro, arquiteta e urbanista, me conta que o objetivo é impedir que o cinema se transforme em algo que não nasceu para ser: “uma loja, ou uma outra coisa. Que ele continue sendo um cinema e, mais do que isso, um cinema formador de público.” Assino. Às 18h30 o prédio recebe um abraço, muito documentado por câmeras e jornalistas da cidade, transmitido, ao vivo, via Facebook, por quem escreve agora. A próxima foto não é minha. Eu estava de costas para o abraço.

O recolhimento de assinaturas continua e as pessoas se dispersam. Dentro do Palace começa a penúltima sessão. Não sei se tento conversar com mais gente, se tiro fotos ou vou fazer um lanche. Decido comer. Vou acompanhada e tentamos elaborar alguns pensamentos sobre o que está acontecendo: qual foi a última vez que você esteve aqui? Mas a qualidade é melhor no shopping. Mas é mais caro. E os festivais? Vão para onde? Foi a falta de público. Foi falta do poder público. Foi a cidade que mudou. Que horas são? Sete e pouquinho. Tenho que voltar e ver se entrevisto mais alguém.
Na fila para a última sessão, encontro minha professora de francês, Marcia Castro. Nos últimos dias ela esteve aqui com seus alunos para ver os filmes do festival. “É muito triste. [O Palace] está em uma área central, onde a gente consegue reunir os alunos. Ele tem uma função primordial de popularizar o cinema.” Seus olhos marejam. Era sua segunda sala de aula.

O filme vai começar. Na sala faço mais algumas fotos. Ana Cláudia entra e pede para que todos se sentem. Os ingressos estão esgotados, mas pode ser que alguém não tenha vindo e sobre lugar para os que não conseguiram as entradas. É nessa hora que descubro que ela é a gerente. “Posso conversar com você?” Antes de apagar as luzes para iniciar um filme pela última vez, uma salva de palmas. O cinema merece. Ela sai, eu saio atrás dela, abrindo mão do começo de "Perdidos em Paris" e pensando se estou ou não ocupando indevidamente o lugar de alguém que não conseguiu os ingressos de última hora.
Fora da sala 1, já é hora de começar a desmontar o último cinema de rua de Juiz de Fora. Uma equipe de TV quer filmar as portas sendo abaixadas, quer imagens dos cartazes sendo retirados da bilheteira, quer a atenção de Ana, assim como eu. “Parecem uns abutres”, alguém comenta. Concordo e continuo a sobrevoar o ambiente, tirando fotos e aguardando minha entrevista. Logo cresce em mim uma agonia de não estar na sala. Decido que quero ver o filme e insisto uma última vez. “É bem rapidinho?” “Sim. Mas, qualquer coisa, posso conversar com você amanhã.” Já me sinto culpada de estar interrompendo o trabalho ingrato de se despedir do cinema pelo qual, posso ver durante nossa conversa, Ana sente tanto carinho. “Vamos fazer agora mesmo.” Amanhã o dia vai ser ainda mais atribulado.
Volto para a sala e, agora sim, me disponho a assistir à última sessão do Cine Palace, o último cinema de rua de Juiz de Fora. Com a cabeça inclinada para trás, já que estou em uma das primeiras filas, mergulho em quase uma hora e meia de uma boa comédia. “Viva, Palace!”, alguém grita ao final. Mais palmas enquanto sobem os créditos. As luzes se acendem na sala 1 pela última vez. A sala 2 ainda termina de exibir “Mulher Maravilha”. De repente, me lembro do pipoqueiro. “Não entrevistei o moço da pipoca! Ele deve ter tanta história para contar.” Saio e ele não está mais lá. Não volto ao Centro pelos próximos dias e não faço ideia se ele voltará àquela esquina também. Porque já não existe cinema de rua em Juiz de Fora.
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